Rir e fazer rir – através da palhaçaria – são ferramentas de transformação individual e coletiva e podem impactar positivamente na vida de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social
Por: Aline Moreno
Refletir sobre o potencial do riso em transformar histórias e em compartilhar esperanças para a realidade de crianças e jovens do país é um ato relevante dentro do contexto social brasileiro, quando pensamos que muitas crianças e adolescentes são expostos a cenários de violência, precariedade socioeconômica e crises humanitárias que repercutem quase que diariamente em todo o território nacional.
No livro “Rir é Preciso”, o médico psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e professor da USP, Daniel Martins de Barros, destaca, por exemplo, a força de superação que o riso desperta, que nos leva para “além das condições imediatas e que pode nos ajudar a superar contextos de sofrimento.”
Se atentar para esse viés de cura, de como o contato com o lúdico pode trazer acolhimento e apoiar na recuperação da autoestima de crianças e jovens é também fundamental quando observamos o aumento dos casos de depressão e ansiedade entre este público de diversas partes do mundo, conforme destacou uma pesquisa recente da Universidade de Calgary.
Em contraponto a esse contexto, o ludismo – que está por trás da ação libertadora de rir (e de se fazer rir) – para além de proporcionar momentos de alegria e prazer genuínos, tem o poder de gerar benefícios que vão do aumento da sensação de segurança em crianças, ao fortalecimento da criatividade e da imaginação criadora que renovam nos jovens sua capacidade de sonhar outros futuros.
Indo além, o riso é ainda um ferramenta de conexão entre pessoas, podendo romper barreiras de preconceito, por meio do humanismo que o sustenta e, nos seus limites mais amplos, pode contribuir para mudanças sociais e para lidar com desafios que ainda fazem parte da realidade de nosso país e do mundo.
Esse caráter, ao mesmo tempo, conectivo e de revelação é um elemento histórico da palhaçaria e das diferentes formas expressivas que buscavam no “fazer rir” uma ponte tanto para o diálogo quanto para a crítica social: pensemos, por exemplo, na figura do bobo, contratado pelas cortes europeias para divertir a realeza, mas que trazia em suas falas e encenações denúncias sobre aqueles mesmos reinados; ou nas cantigas de escárnio e maldizer do trovadorismo que também tinham entre seus temas um caráter transgressor da exposição de conflitos sociais e pendências políticas.
Numa perspectiva brasileira, pode-se citar ainda os hôxwas – figuras cômicas ancestrais pertencentes ao povo Krahô – que, segundo a pesquisadora Ana Carolina Fialho de Abreu, são conhecidos por rirem muito. O povo Krahô tem, entre suas tarefas cotidianas, a caça, o plantio e o riso. Eles consideram que a alegria é um elemento base de sua sociedade, e os hôxwas, para cumprirem essa tarefa, usam a força do riso, da doçura e do escárnio. Dentre suas funções, instauram o avesso, falam o que os outros calam, ensinam o certo ao agir de forma errada, desmistificam o erro, fortalecem a autoestima e unem o grupo através da alegria, do abraço e da conversa, garantindo a sobrevivência de sua cultura milenar.
Em outras palavras: há muitos sentidos para o riso e, em sua essência, esta é a busca pela mudança – de estados emocionais, mas também de contextos sociais vulneráveis no qual rir é uma ponte para a geração de autoestima, segurança e esperança.
O riso e a saúde física e mental
Um dos primeiros sentidos do riso se revela nos efeitos diretos para a saúde e é suficientemente documentado em diferentes pesquisas:
- A Sociedade Espanhola de Neurologia apontou, por exemplo, que as pessoas que riem com frequência têm 40% menos problemas vasculares e vivem em média mais 4 anos e meio;
- Em uma pesquisa publicada pela Biblioteca Nacional de Medicina, também nos Estados Unidos, foi constatada a redução da ansiedade, depressão e estresse como efeitos diretos de terapias do riso;
- Além de liberar a tensão muscular e fortalecer o sistema imunológico, uma reportagem da revista espanhola Ethic relatou que o riso estimula ondas cerebrais do tipo alfa – produzidas quando criamos, meditamos ou dormimos;
- O jornalista político americano, autor, professor e defensor da paz, Norman Cousins, relatou em seu livro “Anatomia De Una Enfermedad” ou “Anatomia de uma Doença”, a observação que fez sobre os efeitos do riso na luta pela sua própria sobrevivência, inclusive usando o riso para conseguir dormir. Durante sua trajetória, Norman foi acometido de uma doença degenerativa denominada espondilite anquilosante, que ataca a coluna vertebral e a chance de sobrevivência era de apenas 1 em 500. Em vez de ficar no hospital esperando para virar estatística, ele resolveu sair e se hospedar num hotel das redondezas, com autorização dos médicos. Sob os atentos olhos de uma enfermeira, com quase todo o corpo paralisado, Cousins reunia os amigos para assistir a programas de “pegadinhas” e seriados cômicos na TV. Ele relatou que dez minutos de risada aliviaram as intensas dores que sofria. Os efeitos do riso beneficiaram seu sono, sua alimentação e prolongaram sua sobrevida.
Assim, fica claro como a palhaçaria – em seus diferentes caminhos na busca do fazer rir – pode e traz benefícios para a saúde mental e física de crianças e jovens e seu poder vai além: o riso potencializa a autoestima, a segurança emocional, ameniza emoções negativas e nos leva a criar distanciamento das experiências dolorosas imediatas; um valor caro em ambientes de violência, envolvidos em crimes, tragédias e crises socioambientais como algumas das vividas em tempos recentes no país.
Rir: um ato que conecta
Rir não gera apenas efeitos internos. Seu poder é também conectivo e, conforme observado pelo neurocientista Robert Provine, o riso ocorre com mais frequência quando as pessoas estão em um grupo, no coletivo, do que quando estão sozinhas. Rir junto gera espaços para uma comunicação mais livre e criação de vínculos.
Nesse sentido, rir, para uma criança, pode ser um meio essencial para o desenvolvimento de laços de afetividade e coletividade; sendo também uma das estratégias das metodologias de palhaçaria para se conectar e levar alegria para as crianças.
Não por acaso, diferentes estudos destacam ainda o papel do riso na melhora da vida pessoal e profissional; ao passo que o filósofo Henri Bergson via o riso como um “gesto social” ligado à “vitalidade” e que parte dos mesmos princípios da “vida intelectual”.
A palhaçaria como ferramenta de transformação social e política
Com todos esses sentidos, fica ainda implícita a capacidade de transformação social e política do riso: seja pelo seu efeito de evidenciar os problemas do país e que afetam diretamente nossas crianças e jovens, seja como uma fonte de resiliência para lidar com situações adversas ou estressantes.
Para entendermos a potencialidade da atividade lúdica e como ela pode ser inserida no processo de regeneração emocional de crianças da primeira infância que sofreram traumas, é preciso estudar ainda a produção do médico e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971), que trabalhou durante a Segunda Guerra com crianças refugiadas, muitas delas privadas da presença materna. Assim, ele desenvolveu um conjunto de novas intervenções clínicas e teóricas, apresentadas em seus livros. No livro “O Brincar e a Realidade”, por exemplo, ele cita:
“É no brincar e talvez apenas no brincar que a criança ou o adulto fluem sua liberdade de criação e podem utilizar sua personalidade integral e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu.” (WINNICOTT, 1975, p. 79-80)
A análise demonstra que, após uma catástrofe, crianças traumatizadas que tenham acesso ao brincar – e por meio da mediação de outras pessoas que as incentivem na realização de atividades lúdicas, sabendo como orientá-las para fora da situação traumática – podem apresentar melhoras em relação à situação vivida.
Isso porque o riso – e os caminhos que levam até ele, como a arte e a palhaçaria – auxiliam a criança (e a todos nós) a trabalhar certos choques que abalam nossas emoções e autoestima, deixando nossa vida mais leve, mas também fazendo nascer (ou renascer) nossos vínculos com a criatividade e o lado lúdico da vida.
As ações promovidas através da palhaçaria podem reverberar para além da melhora emocional, e também têm como objetivo uma atuação sociocultural, como, por exemplo a ocupação e ressignificação de espaços públicos, transcendendo barreiras sociais, religiosas, linguísticas, proporcionando encontros em prol do riso e buscando caminhos alternativos para as nossas sociedades.
Com o riso proporcionado pela palhaçaria, abrimos portas sensíveis e humanas de esperança e transformação e buscamos, por fim, evidenciar que é possível imaginar um amanhã com futuros mais lúdicos, coletivos, de paz e de mudança.
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