POR TEJAS, A PALHAÇA CARMEN SERAFINA
DE FLUXOS E CONTRADIÇÕES
Com o pé na estrada, finalizamos na última sexta feira mais uma Expedição Riso Doce. E o Rio segue na direção do mar.
Mais uma vez estivemos perto da poesia e da dor que emanam do Rio silencioso faladeiro.
E de tudo que o rodeia.
Mais uma vez estivemos diante das águas: das dele, das nossas.
Mais uma vez estivemos diante do movimento, do fluxo e das contradições: das que aparecem em torno dele, das que estão em nós.
É impressionante como a contradição e a dualidade ficam evidentes nesse lugar. Ficam escancaradas, mesmo naquilo que quase não diz ou no que diz para além das palavras. Ou ainda, no que diz sem palavras.
Vimos o Rio bonito e bem mais claro – e soubemos que as últimas análises da quantidade de metal depositada ali revelaram que a previsão para sua recuperação subiu de 15 pra 60 anos. A lama assentou, mas ainda está lá.
Conhecemos a Dona Mercedes que enquanto contava sobre o burrinho que morreu bebendo água do Rio quando a lama chegou e das pessoas aflitas tirando seus animais das ilhas para evitar outras mortes, ria muito, usava gírias jovens e fritava inúmeros ovos para alimentar os palhaços e palhaças. (Inúúúúmeros!)
Ouvimos a “batida forte” dos tambores da banda Natividade Regência que decidiu denunciar com alegria, som e dança a tristeza que aconteceu por lá.
Revimos muitas crianças que se lembravam de nós, mesmo no meio de tantos acontecimentos. Revimos o menino E., tímido artista nato que virou nosso fotógrafo profissional. Revimos o menino I. que bagunçava um monte e imitava meu rebolado do ano passado enquanto eu cantava o Dedum – tirava um sarro de mim, sem imaginar o tamanho da minha alegria no meio daquela brincadeira.
Vimos crianças que riram quando chegamos e choraram quando fomos embora. E que riam enquanto estávamos em cena sem saber que chorávamos escondidos na coxia.
Apresentamos de novo na vila de Maria Ortiz onde o espetáculo e o riso eram interrompidos de 10 em 10 minutos pela passagem do trem da Vale lotado de minérios.
Conhecemos a dona Alda que foi a primeira mulher a participar da Congada de Regência e, com seus muitos anos, se jogava no chão, brincava e interpretava inúmeros personagens na oficina de teatro.
Conhecemos o seu Sebastião que vive em uma região super afetada pela lama e aos 67 anos espera o nascimento da sua nova filhinha.
E conhecemos a Andressa que escolheu ser pescadora porque queria ser livre.
Diante das contradições e dualidades, o Rio, silencioso faladeiro, segue na direção do mar.
Passamos a maior parte do tempo em Regência – onde tem a foz – e um dia quisemos ver a praia e as ondas tão desejadas pelos surfistas.
Elas estavam tão marrons quanto no ano passado.
Eu não esperava ver o mar assim de novo. Marrom. Marrom cor de lama, cor de crime, cor de luta.
Paramos, sentamos com o coração apertado e fomos presenteados por um show de golfinhos saltitantes, contrastando com a água turva.
E no finzinho da nossa viagem, fomos de novo ver de perto a Foz, ali onde o Rio dá seu último suspiro e deságua no oceano.
Ali, naquele encontro, onde por um instante, pareço ter mais consciência do que a vida é.
Ali onde a beleza do fenômeno se uniu à beleza das redes de pescadores sendo lançadas – contrastando com o fato de que essa gente tá comendo peixe contaminado.
E os jovens surfando em mar contaminado.
E o Rio seguindo na direção do mar.
Na sexta feira começou o Festival Regenera Rio Doce organizado por pessoas que eu nem sei colocar em palavras, de tão inspiradoras!
Gente que acredita que é importante parar os trilhos da Samarco sim, mas que também existem outras formas de lutar. Que une a política com a relação profunda e íntima com a natureza. E que acredita que o afeto pode ser uma ferramenta potente pra regeneração do Rio, das relações e da força pra luta.
Meu desejo profundo é que todos e todas tivessem a dimensão do crime, da lama, do estrago, do descaso e dos movimentos de regeneração e luta que acontecem agora em volta do Rio Doce.
Eu entendo que no meio do caos que tá o Brasil e o mundo, nossas atenções são desviadas para diversos lugares porque é isso que eles querem.
MAS PRECISAMOS LEMBRAR DO RIO DOCE.
Não podemos fingir que não é com a gente, porque é. E não é só porque nós também podemos estar comendo peixe contaminado. É muito maior. E a gente não tem a menor idéia…
Escrevi muito, mas foi porque precisa sair de alguma forma tanta intensidade, tantas contradições, tanto amor por todos esses trabalhos e movimentos de riso e luta.
O Rio de lama e poesia: segue na direção do mar.
Eu Rio, com lama e poesia: sigo na direção do mar.
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